Introdução: Uma Revolução no Setor Elétrico
A Medida Provisória (MP) 1.304/2025, aprovada pelo Congresso Nacional em 30 de outubro de 2025, representa a mais ampla atualização do marco regulatório do setor elétrico brasileiro em mais de uma década. Liderada pelo Senador Eduardo Braga, a proposta foi desenhada com três objetivos centrais: promover a modicidade tarifária (tarifas mais justas), garantir a segurança energética do país e realizar uma ampla reestruturação do setor. Para isso, o texto altera mais de 20 leis estruturantes e redesenhando as regras para geração, comercialização e consumo de energia.
A Grande Mudança: A Abertura do Mercado Livre de Energia (ACL) para Todos
A espinha dorsal da MP 1.304 é a democratização do acesso ao Ambiente de Contratação Livre (ACL), popularmente conhecido como mercado livre de energia.
O que é a Expansão do Mercado Livre?
Atualmente, os consumidores de baixa tensão, como residências e pequenos comércios, estão no “mercado cativo”, sendo obrigados a terceirizar sua compra de energia para a distribuidora local. A expansão do ACL significa que, pela primeira vez, consumidores de baixa tensão (inferior a 2,3 kV) terão o direito de escolher de quem comprar sua energia elétrica. Isso cria um ambiente de concorrência, onde diferentes fornecedores disputam a preferência do cliente.
A implementação dessa abertura será gradual, seguindo o cronograma abaixo:
- Em até 24 meses: Abertura para indústrias e comércios.
- Em até 36 meses: Abertura para residências.
Mecanismos de Suporte para a Abertura
Para garantir que essa transição ocorra de forma segura e organizada, a MP criou três mecanismos de suporte fundamentais:
- Supridor de Última Instância (SUI): Funcionará como um “socorro” para os consumidores do mercado livre. Caso um fornecedor de energia venha a falir ou interrompa o serviço, o SUI assume o fornecimento temporariamente, evitando que o consumidor fique sem eletricidade.
- Plano de Comunicação: A lei exige a criação de um plano nacional de comunicação para educar e conscientizar os consumidores sobre como funciona o mercado livre, seus benefícios e os passos para realizar a migração.
- Mitigação de Riscos da sobrecontratação para as Distribuidoras: Com a migração de clientes para o mercado livre, as distribuidoras podem ficar com excesso de energia contratada. A MP prevê a criação de encargos para mitigar esses riscos de sobrecontratação e exposição involuntária, protegendo o equilíbrio financeiro das concessionárias.
Além de redefinir quem pode escolher seu fornecedor, a MP trouxe outras mudanças profundas para diferentes áreas do setor elétrico.
As Principais Alterações Setoriais da MP 1.304
A MP 1.304 foi abrangente, impactando diversas fontes de geração, regras de comercialização e encargos. Abaixo estão os pontos de maior destaque.
Geração Distribuída (GD): Uma Vitória para a Energia Solar
Uma das mudanças mais celebradas foi a retirada do texto final da cobrança de R$ 20 por 100 kWh que havia sido proposta para novos projetos de Geração Distribuída (GD) no texto original do relatório do Senador Eduardo Braga.
A Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD) comemorou, afirmando que o “texto aprovado preserva integralmente os direitos dos consumidores e investidores”.
Cortes de Geração (Curtailment): Novas Regras de Ressarcimento
O curtailment é o corte ou limitação na produção de energia, geralmente de fontes renováveis como eólica e solar, por motivos técnicos ou de segurança do sistema elétrico. A MP 1.304 estabeleceu regras claras para compensar os geradores por essas perdas.
- Direito ao Ressarcimento: Geradores eólicos e solares terão direito a ressarcimento por todos os cortes de geração, com exceção daqueles causados por sobreoferta de energia no sistema.
- Fonte do Pagamento: A compensação será paga via Encargos de Serviço do Sistema (ESS), um custo que é rateado entre todos os consumidores de energia do país, aparecendo na conta de luz.
- Condições e Prazos: O ressarcimento é retroativo a 1º de setembro de 2023, mas os geradores que quiserem recebê-lo deverão desistir de eventuais ações judiciais sobre o tema. O Ministério de Minas e Energia (MME) tem 30 dias, após a sanção presidencial, para definir os detalhes dessa compensação.
Fontes de Energia: Carvão vs. Gás Natural
A MP tomou decisões contrastantes em relação a duas importantes fontes termelétricas, refletindo um acordo político com o governo para oferecer segurança para a matriz energética.
| Fonte de Energia | Decisão Aprovada na MP 1.304 |
| Carvão Mineral Nacional | Teve a contratação de termelétricas estendida até 31 de dezembro de 2040. |
| Gás Natural | Foi retirada a obrigatoriedade de contratação de usinas térmicas a gás que havia sido incluída na lei de capitalização da Eletrobras. |
Armazenamento de Energia (Baterias)
A MP 1.304 consolidou as regras para o armazenamento de energia em baterias (Battery Energy Storage Systems – BESS), reconhecendo oficialmente essa tecnologia como um instrumento de flexibilidade operacional. Isso significa que as baterias podem ser usadas para garantir a estabilidade da rede, especialmente com o aumento de fontes intermitentes como solar e eólica.
Para incentivar o setor, o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (REIDI) foi ampliado para incluir projetos de armazenamento. O ministro Alexandre Silveira destacou a urgência do tema, afirmando que, “sem baterias, nós vamos ao colapso energético”. Um leilão para contratar capacidade de armazenamento está previsto para 2026.
Autoprodução de Energia
A autoprodução ocorre quando um grande consumidor gera sua própria energia. A MP estabeleceu novas restrições para a equiparação de consumidores a autoprodutores, com o objetivo de evitar a criação de estruturas societárias artificiais para obter benefícios.
- Novos Requisitos: A equiparação agora exige uma demanda agregada mínima de 30 MW, com unidades consumidoras individuais de pelo menos 3 MW.
- Direito Adquirido: A lei protege os direitos de contratos já vigentes e daqueles que comprovarem seu enquadramento à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) em até 3 meses após a publicação da lei.
Royalties do Petróleo: Nova Metodologia de Cálculo (PRP)
A MP também promoveu uma alteração significativa no setor de petróleo e gás ao mudar a metodologia de cálculo do Preço de Referência do Petróleo (PRP). Esse valor serve de base para o pagamento de royalties por parte das empresas exploradoras. A nova metodologia tem como objetivo elevar o preço de referência, aumentando a arrecadação dos royalties.
Respondendo às Principais Dúvidas sobre a MP 1.304
Atenção, cliente Clarke! Quem terá direito aos descontos das incentivadas?
Os textos que compõem o contexto da MP 1.304 não especificam claramente se os descontos para fontes incentivadas (como solar, eólica, biomassa e PCHs) se aplicam apenas a consumidores que já migraram para o mercado livre ou também aqueles que estão no processo de migração. Esse detalhamento possivelmente ficará a critério da ANEEL e/ou do MME.
Por outro lado, consumidores que ainda não iniciaram a migração para o mercado livre de energia, não poderão contar com os descontos sobre a TUSD/TUST que essas fontes oferecem atualmente.
SUDAM/SUDENE: Qual foi o resultado?
A redação final do projeto de lei resultante da MP 1.304/2025 inclui disposições que direcionam recursos para a modicidade tarifária em regiões específicas, diretamente ligadas à atuação da SUDAM e da SUDENE – região Norte e Nordeste.
O texto estabelece que valores excedentes provenientes do mecanismo concorrencial centralizado que liquida montantes financeiros não pagos na liquidação do Mercado de Curto Prazo (MCP), decorrentes de ações judiciais relativas a riscos hidrológicos (MRE), destinados à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), serão utilizados, para os anos de 2025 e 2026, para fins de modicidade tarifária nessas regiões.
Eficiência Energética (EE), Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) e Tarifa de Fiscalização do Serviço de Energia Elétrica (TFSEE): As comercializadoras vão pagar?
A MP alterou a Lei nº 9.991, determinando que as comercializadoras de energia deverão aplicar anualmente no mínimo 0,50% de sua receita para EE e P&D cada e 0,4 em TFSEE – totalizando 1,4% da receita total. Embora a medida vise a modernização e o consumo consciente, é provável que esse custo adicional seja repassado aos clientes finais nos preços da energia no mercado livre.
Análise de Impactos: Quem Ganha e Quem Perde com a Nova Legislação?
Consumidores de Energia de Média e Alta Tensão (Livres)
| Impactos Positivos | Impactos Negativos |
| • Consumidores livres atualmente devem manter o desconto da energia incentivada sobre a TUSD/TUST.
• Maior oferta de produtos e serviços energéticos. • Criação do Supridor de Última Instância (SUI) reduzindo o risco. |
• Arcará com os novos encargos (curtailment via ESS, SUI, risco de sobrecontratação das distribuidoras e etc).
• A partir do cenário onde as Comercializadoras de energia pagam EE e P&D, possivelmente terão impacto indireto com o aumento dos preços (R$/MWh) da energia livre. |
Consumidores de Energia de Média e Alta Tensão (em migração)
| Impactos Positivos | Impactos Negativos |
| • Criação do Supridor de Última Instância (SUI) reduzindo o risco.
• Caso o processo já esteja em curso, o cliente tende a permanecer com o desconto da TUST/TUSD. Contudo, para ter 100% de certeza, terá que aguardar a ANEEL e/ou o MME esclarecer os detalhes das regras do desconto da TUST/TUSD. |
• Passará a arcar com os mesmos novos encargos citados nos consumidores livres. |
Consumidores de Energia de Média e Alta Tensão (Cativos)
| Impactos Positivos | Impactos Negativos |
| • Mantêm a opção de migrar para o mercado livre. | • Passará a arcar com os mesmos novos encargos citados nos consumidores livres.
• Não terá mais a oportunidade de comprar energia de fontes incentivadas com o desconto sobre TUSD/TUST. |
Consumidores de Energia de Baixa Tensão
| Impactos Positivos | Impactos Negativos |
| • Conquistaram o direito histórico de escolher seu fornecedor de energia.
• Criação do Supridor de Última Instância (SUI) reduzindo o risco. |
• Necessidade de se educar para um mercado mais complexo.
• Exposição a novas dinâmicas de preços e riscos contratuais. • Passará a arcar com os mesmos novos encargos citados nos consumidores livres. • Não terá desconto da incentivadas TUSD/TUST |
Geradores Centralizados de Energia Renovável (Eólica e Solar)
| Impactos Positivos | Impactos Negativos |
| Garantia de ressarcimento por curtailment (exceto sobreoferta), com efeito retroativo a partir de setembro de 2023. | • Retirada do desconto da TUSD/TUST para novos empreendimentos de geração incentivada que não iniciaram a operação comercial dentro dos prazos de transição estabelecidos.
• Retirada do desconto da TUSD/TUST para clientes dessas usinas que ainda não iniciaram a migração ao ACL. |
Geradores Centralizados de Energia Convencional (Carvão)
| Impactos Positivos | Impactos Negativos |
| Extensão da contratação de geração térmica a carvão da Usina Candiota até 2040 (localizada no Rio Grande do Sul). | – |
Geradores Distribuídos (GD)
| Impactos Positivos | Impactos Negativos |
| Nenhum impacto positivo direto. | Nenhum impacto negativo direto. |
Comercializadores de Energia Livre
| Impactos Positivos | Impactos Negativos |
| Expansão exponencial do mercado potencial com a abertura para a baixa tensão, abrindo um novo segmento de varejo em massa. | Obrigação de investir 1,4% da receita em eficiência energética, Pesquisa e Desenvolvimento e TFSEE, um custo que, em um mercado de varejo mais competitivo, pode ser difícil de repassar integralmente, afetando a lucratividade. |
Distribuidoras de Energia (Concessões)
| Impactos Positivos | Impactos Negativos |
| Criação de mecanismos para mitigar riscos financeiros decorrentes da sobrecontratação por conta da migração de clientes ao mercado livre de energia. | Nenhum impacto negativo direto. |
Conclusão
A Medida Provisória 1.304 é, sem dúvida, uma reforma profunda no setor elétrico brasileiro. Ao expandir o mercado livre para todos os consumidores, incentivar tecnologias de ponta como as baterias e redefinir as regras do jogo para fontes renováveis e convencionais, a legislação prepara o Brasil para um futuro energético mais competitivo, flexível e alinhado às demandas de sustentabilidade. Por outro lado, o curto tempo em que a proposta foi debatida não foi suficiente e deixou dúvidas sobre procedimentos importantes que podem inviabilizar contratos já firmados.
O próximo passo da medida é a sanção presidencial que tem que ocorrer em até 15 dias da aprovação no Senado que ocorreu dia 30/10/25. Depois disso, caberá à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e/ou o Ministério de Minas e Energia (MME) a tarefa de regulamentar detalhadamente cada ponto, transformando as diretrizes aprovadas em normas, direitos e deveres para todos os agentes do mercado.